Image and video hosting by TinyPicImage and video hosting by TinyPic

quinta-feira

A festa do título do Flamengo na aldeia dos Kariri-Xocós


Uma parte do imenso coração rubro-negro, campeão brasileiro, bate forte numa tribo situada na divisa dos estados de Alagoas e Sergipe, perto do município de Porto Real do Colégio (AL). Enquanto os jogadores do Flamengo davam a volta olímpica no Maracanã, a alegria na comunidade dos índios Kariri-Xocó era imensa. Depois de um longo e difícil campeonato, o time levantou a taça sem imaginar que muito longe dali uma aldeia com 80% de rubro-negros festejava como poucas vezes foi visto.

Image and video hosting by TinyPic

A paixão pode ser medida pelo suor. Os índios rubro-negros trabalham até quatro dias para os comerciantes da cidade mais próxima em troca de uma camisa do Flamengo. Diante de uma dura rotina de trabalho na roça, Alaerson Fernandes da Cruz, conhecido como Ayrá, luta para garantir o sustento da família. Entre as muitas horas que passa na colheita, a paixão clubística o refresca como um banho no Rio São Francisco, que fica a apenas 50 metros da sua casa.

A identificação com o vermelho e preto na tribo dos Kariri-Xocós começou há muito tempo, com os avós de Ayrá. O índio conta que, antigamente, as notícias chegavam até lá através do radinho de pilha.

— Os times do Rio são os mais queridos aqui por causa do rádio. Nossos pais e avós já eram Flamengo e nos passaram essa paixão. Meu pai tinha um radinho de pilha e os apaixonados por futebol, em dia de jogos, iam para a beira do mato para ouvir a transmissão — conta o índio, por telefone.

Atualmente está um pouco mais fácil acompanhar o Flamengo. Uma organização não governamental colocou uma televisão no centro cultural da aldeia. Em cada jogo, são de 800 a mil índios reunidos à espera dos gols. A internet, também disponibilizada pela ONG, os ajuda no noticiário durante a semana. Mas Ayrá, de 51 anos, não consegue ler.

— Sou analfabeto. Gostaria de aprender a ler e escrever, mas infelizmente nunca tive essa oportunidade — lamenta.

O dia de Ayrá começa às 4h. O café da manhã é reforçado com aipim, tripa de boi, cuzcuz e café preto. Depois do banho no Rio São Francisco, começa o trabalho na roça, que só para na hora do almoço, quando o cardápio prevê feijão preparado ali mesmo, numa fogueira na sombra de uma árvore, acompanhado de uma carne que varia, às vezes peixe, às vezes uma espécie de tatu caçado horas antes na mata.

— Quem não trabalha, não come. A regra é essa. Preguiça não pode existir. Já para quem tem algum problema de saúde nós garantimos o sustento até ele poder voltar ao batente.

Os índios que não vão para a roça trabalham nas peças de artesanato, que são vendidas na beira da estrada.

— Fazemos pintura, arco e flecha, brinco, pulseiras, cachimbo, entre outras coisas, mas com uma condição: sempre com as cores do Flamengo.

O trabalho dura até 17h, quando os índios se reúnem para uma conversa e descanso. A pauta principal é o futebol, o principal meio de lazer.

— É sempre uma festa muito grande quando o Flamengo ganha. Comemoramos depois das partidas fazendo o Toré (dança típica). Quando perde é o contrário. Um clima de tristeza fica no ar. Mas logo começamos a pensar no jogo seguinte e consolar os jovens.

A noite cai e o jantar prevê sempre o mesmo prato: sopa de feijão. No entanto, ninguém tem o direito de reclamar.

- A nossa vida é sofrida. Para sobreviver, a gente tem que lutar bastante para sustentar filhos e mulher. Tenho sete filhos com duas companheiras diferentes. Com a primeira, que me separei há 15 anos, são três. Com a segunda, quatro. A minha filha mais velha tem 20 anos. Ela tem dois filhos e está esperando mais dois. Todos da minha família, sem exceção, são torcedores do Flamengo.

O ídolo da maior parte dos rubro-negros da tribo é Petkovic. Ayrá conta que a torcida do Fluminense é a segunda maior, seguida pela do Vasco e do Botafogo. O quinto time mais querido é o Palmeiras. A convivência, segundo ele, é tranquila entre os rivais.

— Quando um time perde, todo mundo brinca com os torcedores derrotados, mas é tudo na base da brincadeira. A lei da gente não permite qualquer espécie de discussão.

Para evitar confusões, a Funai (Fundação Nacional do Índio) coloca na tribo um Chefe de Ponto (espécie de juiz), que intercede quando há um conflito. Torcer pode, à vontade, mas brigar é proibido. O futebol já faz parte da cultura dos Kariri-Xocós. Além da paixão pelos clubes e pela seleção, os índios adoram jogar. Há três times nas redondezas: Futebol Clube Kariri-Xocó, Guarani e Flamenguinho, este formado por mulheres.

— O futebol da tribo sempre acontece aos domingos, na parte da tarde, mais ou menos 14h30. Muitos daqui, se tivessem oportunidade nos grandes centros, poderiam brilhar. Os índios jogam com muita vontade e têm ótimo preparo físico — diz o 'zagueiro' Ayrá.

As partidas contra times de outras cidades ou tribos são marcadas por grande comemoração. Os rivais são recebidos com rituais de dança e canto. A alegria serve também para minimizar a tristeza com as muitas doenças.

— Esse setor de saúde é péssimo para nós. A Funasa (Fundação Nacional da Saúde) deveria cuidar melhor da gente. Mas há muita corrupção. O dinheiro não chega. Estou com um problema no joelho há mais de quatro meses e ainda não conseguiram um exame para mim. Cada vez mais estamos pegando doenças diferentes que ainda não têm combate na tribo. Como acabar com um tumor aqui, por exemplo? A gente tenta colocar casca de tomate na pele. Ajuda a sarar feridas, mas só.

Analfabeto e com alguns problemas de saúde, Ayrá cura sua tristeza na família, nos amigos e no futebol. A única forma de ganhar dinheiro é através do Bolsa Escola, programa que fornece R$ 31 mensais aos pais que colocam suas crianças para estudar. Como dois filhos dele estudam na cidade mais próxima, Ayrá recebe R$ 62 para comprar calça, tênis e material escolar. O pouco que sobra serve para alguns remédios. Mesmo com tantas dificuldades, ele esteve no ano passado na Europa.

— Através do Ministério da Cultura, fui para Paris, Madri e Bruxelas no final de 2008 para mostrar os costumes da tribo. Achei tudo muito diferente. Um índio, acostumado a comer feijão e farinha, não consegue se adaptar àquela comida deles - contou, sem saber listar os pratos que apreciou no Velho Continente.

Os índios, cada vez mais, adotam aspectos culturais diferentes, como a paixão pelo futebol. Depois da construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, no Rio São Francisco, os peixes passaram a descer em menor número até a aldeia, reduzindo o sucesso da pesca. Mas, se os peixes são cada vez mais raros na dieta indígena, pelo menos o jejum de títulos brasileiros do Flamengo acabou. Festa na tribo.

FS com Bola de Meia

Nenhum comentário:

Horario